Cultura

O BERIMBAL

Mulher na Roda

A capoeira nasceu nas senzalas do Brasil, época em que a escravidão era legalizada no país, através da necessidade dos negros escravizados de resistirem e lutarem contra um sistema de exploração e grande violência. Foi marginalizada, perseguida e proibida entre 1890 e 1930, mas, com o crescimento de suas manifestações e adeptos, acabou por transformar-se em um símbolo identitário brasileiro sendo reconhecida, em 2008, como Patrimônio Nacional e, em 2014, como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura, a Unesco.

Por tratar-se de um instrumento de luta e resistência, natural que as mulheres se interessassem pela manifestação, uma vez que também carregam um histórico de enfrentamento à uma sociedade machista e patriarcal. No entanto, a capoeira sempre foi considerada um espaço masculino, tendo sua imagem ligada à agressividade e valentia. Sendo assim, em um primeiro momento, às mulheres era relegada a posição de observadoras. No máximo, atuavam como companheiras dos capoeiristas homens.  

Aquelas que insistiam em praticar a capoeira precisavam se esconder atrás de pseudônimos que dificultavam sua identificação. Daí surgiram ‘personagens’ célebres como Calça Rala, Satanás, Nega Didi, Maria Para Bonde, Maria Navalha(citada na edição anterior), Salomé, Maria 12 Homens e tantas outras, que teriam feito história. Essas mulheres capoeiristas, e algumas outras da época, eram muitas vezes consideradas masculinizadas, violentas e até perigosas. Sobretudo na primeira metade do século 20, como não eram reconhecidas como capoeiristas, muitas figuras femininas que desafiaram as regras carregavam uma ficha criminal extensa.

Registros oficiais — As histórias de Rosa Palmeirão, Idalina e Chicão foram esquecidas, mas no começo do século 20 estiveram nas notícias de jornais e em boletins policiais. Elas eram famosas por usar a capoeira para se defender em situações de risco e até reagir a abordagens policiais violentas.

Rosa Palmeirão viveu em Salvador na primeira metade dos anos 1900. Foi presa após lutar com dois agentes civis que disseram que ela apresentava sinais de embriaguez — a mulher estava, na verdade, em trabalho de parto — e “andava rodopiando”. Rosa jogou para tentar escapar, mas foi levada e pariu na cela.

Idalina foi presa várias vezes nas décadas de 1910 e 20. Em uma delas, jogou na rua com uma amiga (elas se desentenderam) e o guarda civil que foi separá-las acabou apanhando.

Francisca Albina dos Santos, a Chicão, também frequentou a cadeia. Certa vez bateu em Pedro Celestino dos Santos, que era conhecido como Pedro Porreta. Ele invadiu sua casa atrás de outra mulher e surpreendeu Chicão em trajes íntimos. Ela partiu pra cima dele. O apelido vinha da estatura alta e do grande desenvolvimento físico A descrição constava na ficha da delegacia, em 1935.

O cenário começou a melhorar quando o Mestre Bimba, importante e reconhecido mestre baiano, um dos mais importantes da história da arte marcial brasileira, abriu a roda para a participação feminina. Ele também levou a prática para dentro das academias, em 1932 – a primeira de sua propriedade -, e para o exterior, um pouco mais tarde. Outro mestre muito respeitado no meio, Pastinha, contemporâneo de Bimba, também mostrava-se simpático à presença delas no jogo dizendo que este era “para homem, menino e mulher, só não aprende quem não quer”.

Assim, as mulheres começaram a ter maior liberdade para jogar e, também, tornarem-se mestras, agregando à manifestação particularidades que só poderiam ser inseridas por elas. Tornando a prática muito mais democrática, uma vez que na roda todos jogam de maneira igualitária, a presença da mulher na capoeira acaba funcionando como instrumento de promoção da tolerância, respeito e equidade.

No entanto, o cotidiano de capoeiristas ainda não alcançou esses ideais por completo. O preconceito e discriminação insistem em dar as caras, fazendo as capoeiristas perpetuarem o espírito de luta historicamente atribuído à manifestação. Izabel Cristina de Araújo, a Mestra Bel, lida com essa realidade desde 1989, quando começou a praticar a capoeira. Para ter vez e voz nesse espaço, a mestra foi além do jogo e estudou a manifestação no seu mestrado em Antropologia e no doutorado em História, realizado pela Universidade Federal de Pernambuco. 

A mestra fala sobre as dificuldades ainda presentes: “O preconceito ainda é grande. ainda acontecem violências físicas e simbólicas nas rodas e treinos. O assédio ainda é uma realidade. Mas as redes de mulheres na capoeira tem ajudado a visibilizar essas violências, identificar os agressores e construir estratégias de não se deixar agredir”

Nascida em Juazeiro da Bahia, a professora de educação física Joselita Pereira de Oliveira, Mestra Jo, tem 45 anos e é o que a história classifica como mulher incorrigível. Ela começou a praticar capoeira aos 7 anos, sem o apoio da mãe. “Fui insistente em fazer com que minha mãe e todas as pessoas que não acreditavam enxergassem que aquilo era minha vontade e determinação,” conta.

 “As  contemporâneas são muitas”, afirma Mestra Jo, citando as mestras Sheila, Espaguete, Batatinha, Smurfette, Cigarra, Rufato, Bia, Cigana, Edna, Janja, Tisza, Mara, Brisa, Carol, Patrícia, Miúda… E completa: “Que venham mais e mais referências, porque precisamos deste apoio e força feminina, uma dando suporte a outra a cada momento de nossa trajetória.”

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